quarta-feira, 18 de julho de 2012

O Jiu-Jitsu e a guarda


Bem antes das finalizações consagradoras de Fabricio Werdum (sobre o poderoso Fedor) e de Anderson Silva (sobre o “poderosão” Sonnen), sua revista mais completa sobre Jiu-Jitsu já reforçava a importância da guarda.

Em fevereiro de 2009, GRACIEMAG publicou a reportagem de capa abaixo, destrinchando os aspectos mais importantes desta posição essencial nos ringues e dojôs. Confira, reveja e assine logo sua GRACIEMAG para mais reportagens como essa, capazes de levar seu Jiu-Jitsu, e sua leitura, a um outro patamar.


Rilion ensinando guarda aos alunos em Miami. Foto: Ray Santana.

Sim, você nem lembra, mas já nasceu fazendo guardinha. Se parou de treinar por uns tempos o vacilo foi seu. Afinal, a posição, eterna salva-vidas dos lutadores de Jiu-Jitsu nos ringues, já estava consagrada há tempos. Anos. Séculos.

Quem olhar a obra-prima “Riña en el Mesón del Gallo”, tela de um dos melhores pintores de todos os tempos, se não o melhor, Francisco Goya, pode observar a seguinte cena: uma briga de bar, espanhóis dando pauladas para todos os lados. No centro da tela, um cara em posição superior parece… estar passando a guarda! Bem, deve-se ter um pouco de imaginação para ver isso.

Mas a criatividade esteve sempre ligada à guarda. Num livro obscuro, encontrado nas prateleiras do estudioso Márcio Feitosa, professor da Gracie Barra, pode-se ler uma teoria de que pigmeus africanos já valorizavam, no combate corpo-a-corpo, a técnica de manter as pernas entre o feroz agressor e o seu nariz. Espernear, portanto, sempre foi a salvação.


O quadro de Goya, pintado em 1777, está hoje no Museu do Prado, em Madri.

Foi o Jiu-Jitsu brasileiro, no entanto, que melhor explorou e valorizou a guarda, como a arte de se defender no chão e equalizar os pesos do agressor e do agredido. Mais do que o judô, sambo ou qualquer outra.

Mas, e os japoneses? Não foram eles que criaram a técnica? Não existem escolas até hoje que priorizam a parte de grappling no judô, parte esta chamada por eles de newaza? Sim, é verdade. Perguntemos, então, a um especialista como o carioca Flávio Canto, o chão mais ofensivo do judô mundial, como ele vê a questão.

“Acho o Jiu-Jitsu brasileiro excepcional. Sua grande contribuição para o newaza mundial, e para o jogo de guarda, foi aliar uma quantidade tão grande de praticantes com a criatividade do brasileiro. Daí surgiu toda a gama de posições e situações inéditas, consagradas hoje”, diz o medalhista olímpico em Atenas-2004. “Guarda-aranha, por exemplo, eu nunca vi antes em lugar nenhum, é coisa do Jiu-Jitsu brasileiro. Outro aspecto positivo da arte é cair fazendo guarda e virando-se sempre de frente para o adversário, afinal ninguém tem olho na nuca. É este reflexo que falta a muitos judocas e wrestlers.”

De pedra em pedra, a muralha

Quando aportou no Brasil no início do século XX, o japonês Conde Koma não trouxe apenas um eficaz jogo de pernas, aprendido com afinco pelo jovem Carlos Gracie. Passou também lições orientais de disciplina, saúde e honra que permeariam a história da família para sempre. Buscando espalhar a arte que lhe dava tantos benefícios, Carlos começou a fazer história – e a escrever também a história da guarda. “Ele foi o primeiro ocidental a superar um campeão oriental, em 1924, numa época em que os japoneses achavam os ocidentais uns degenerados”, lembra o filho Rilion Gracie, considerado a melhor guarda da família. Foi contra Geo Omori, quando o grande mestre puxou para a guarda e aplicou um tomoe-nage, o popular “balão”, e caiu montado. O Gracie então estalou o braço do valente japonês, que mandou a luta seguir com as veias saltadas.

Mais tarde, em 1951, quando o irmão Helio Gracie fechou a guarda e, com seus pulsos (fortes até hoje), pôs o exímio judoca Jukio Kato para dormir, num estrangulamento de gola, a arte da guarda estava consagrada. E pronta para continuar sendo desenvolvida, graças à criatividade e suor de outros Gracies, Barretos, Hemetérios, Machados, Vigios, Alves, Virgílios, Gomes, Behrings, Duartes, Penhas, Jucás, Castello Brancos, Góes, Vieiras, Santos e Silvas. E até um Stambowsky. Cada novo fiel adepto da guarda ia dando sua contribuição, depositando uma pedra aqui, cimentando ali, e ajudando a erguer a reputação da guarda como essência do Jiu-Jitsu.

A metáfora de construção, na verdade, não é gratuita. Para Carlos Gracie Jr., a posição de guarda é como a fortaleza que dá segurança ao lutador. Você não perde necessariamente a guerra se não tem uma muralha sólida, mas que ajuda, ajuda. Inclusive para, do alto dela, postar seu arsenal ofensivo: “A guarda é a fortaleza do lutador de Jiu-Jitsu. Você escolhe se prefere lutar com ela aberta ou fechada”, ensina.

“Numa guerra, o mais inteligente é o quê?”, indaga Carlinhos. “Começar a guerra de portões fechados. Na guarda fechada, você está guerreando com o inimigo fora dos seus muros. Se o cara abre sua guarda, ele derruba sua porta levadiça. É a posição limítrofe, que obviamente exige nova estratégia. Se ele invadir, ou seja, passar sua guarda e chegar do lado, a batalha começa a se desenrolar dentro dos seus domínios, com você muito mais exposto. Complicou, vai exigir o triplo de força para você se defender, mas não quer dizer que não haja saída.”



O escudo vira arma

No Rio dos anos 1950, o Jiu-Jitsu já era famoso por dar a qualquer magrinho a chance de ser sua própria fortaleza. Foi, então, a vez de Carlson Gracie dar sua contribuição à guarda – primeiro em seus tempos de lutador, depois com seus alunos. Competitivo ao extremo, Carlson começou a especializar seus alunos, para ganhar os campeonatos. Era quando bradava: “Ou és guardeiro, ou és passador”. Se o leitor perguntar quem foram seus melhores pupilos, quatro bons guardeiros estarão certamente na lista: Cássio Cardoso, Ricardo de la Riva, Sergio Bolão e Murilo Bustamante.

“Há o mito de que o Carlson só treinava passadores de guarda. Mas além do De la Riva, ele tinha outro aluno, Marcelo Duque Estrada, o Homem-Polvo, hoje juiz, que tinha uma guarda incrivelmente elástica”, comenta o mestre faixa-coral Redley Vigio. “Cássio Cardoso, por exemplo, era completo. Mas a guarda dele de fato marcou: todo estudante de Jiu-Jitsu devia assistir à sua luta de uma hora de duração contra Marcelo Behring, em 1988. Marcelo também tinha uma senhora guarda, e o final é sensacional. Está toda no Youtube.”



Grandes para a época, com cerca de 76kg, Cássio tinha no aluno de Rickson Gracie seu maior rival, e a luta de uma hora foi o tira-teima entre os dois, realizado na Lagoa, na casa de shows Jardim Babilônia, ex-Roxy Roller. “Carlson me disse para puxar para a guarda e cansá-lo. Usei até uma raspagem que aprendi com Marcio Macarrão, mas na época não valia ponto. No fim, passei a guarda três vezes e ele passou uma, 6 a 2, na pontuação da época. Hoje, seria algo como 21 a 5”, comenta Cássio, de 46 anos.

Até 1994, não bastava o lutador de baixo inverter a luta e cair por cima para ganhar os pontos de raspagem – tinha de fazê-lo usando apenas golpes reconhecidos, como o tomoe-nage, ou o pé na virilha, ou a tesoura clássica, entre outros poucos. Com a reforma de regras, proposta pela recém-inaugurada Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu, bastava aos guardeiros passar a ficar por cima para faturar dois pontos. Eles agora estavam prestigiados. E prontos para surpreender.

“A guarda, que até 1994 era mais um escudo, passou a ser a arma que podia decidir a luta. Lembro de ter visto na academia, em 1987, Renzo Gracie fazer guarda-aranha pela primeira vez. Como ele era um cara com muitos recursos, usava pouco nas competições. Eu, magrinho, adorei a invenção e surpreendi muita gente”, lembra Vinicius Magalhães, o Draculino, de 37 anos. O show dos guardeiros começava. No mesmo ano, com o gancho de fora enrolado pelo seu pé largo e mole, Ricardo de la Riva conseguiu parar o ímpeto do praticamente imbatível Royler Gracie, e ganhou uma guarda com seu nome.

Com um “joelho morto”, como lembra, Roberto “Gordo” Corrêa foi obrigado a improvisar e também deixou sua marca na arte. “A meia-guarda, que até então podia ser considerada uma posição favorável ao atleta de cima, quase tão boa para atacar como do cem-quilos, é hoje uma posição perfeita para o cara de baixo contra-atacar. Não tem jeito, o Jiu-Jitsu segue em franca evolução”, observa Carlinhos Gracie.



Perna dura? Ok, você ainda pode ser um ótimo guardião

Difícil falar na evolução da posição sem citar dois outros foras-de-série. Roberto “Roleta” Magalhães, o engenheiro das raspagens, influenciou uma geração com golpes novos, armadilhas improváveis que superaram, nos Mundiais, craques de diversas gerações – de Wallid Ismail (1996) a Zé Mario Sperry (1998), de Amaury Bitetti (1999) a Fernando Margarida (2000). Não à toa, os três donos das guardas mais admiradas da atualidade – Rubens Cobrinha, Bráulio Estima e Roger Gracie – consideram a ele, Roleta, o melhor que já viram lutar. Outro exímio guardeiro, com finalizações surreais, foi Antonio “Nino” Schembri, que também deu novo ritmo ao Jiu-Jitsu ofensivo – no caso, o rock de seu ídolo Elvis Presley.

Alongados, de pernas fortes e flexíveis, os dois ases da Gracie Barra ajudaram a solidificar o mito de que guarda eficiente é guarda elástica, quase mágica. Não necessariamente. Árbitro da batalha entre Roleta e Wallid, no Mundial 1996, o policial Sergio Ignácio cansou de treinar com as melhores guardas da Gracie Barra. Passador dos bons, forte, adepto daquele jogo de amassar, viu-se num dilema na faixa-marrom: “Ou eu aprendia a fazer guarda, ou Carlinhos não me graduaria faixa-preta. Foi quando expus meu problema para Renzo, e ele me deu o pulo do gato que acabaria com meu temor de fazer guarda: a boa reposição não exige elasticidade, abertura de pernas – basta você não deixar o cara passar da linha do seu joelho. Essa lição facilita muito para repor”.

A partir daí, seu jogo de guarda pode ganhar asas. Como o “Carcará” Bráulio Estima revela: “Quando eu ataco, faço de trás para a frente. Primeiro, bloqueio a defesa do adversário para o meu ataque, e só depois busco o golpe fatal. São ajustes mínimos. A primeira coisa a fazer é quebrar a postura do adversário. Aí trabalho e tento anular sua defesa, antes mesmo de atacar. Assim, se eu ataco um triângulo mas o cara defende, acaba sobrando um braço. Hoje, o bom guardeiro não é aquele que defende a melhor passagem do adversário, e sim aquele que não deixa o adversário começar a aplicar sua melhor passagem. Não se pode deixá-lo desenvolver seu melhor jogo. É o famoso ‘passo à frente’”.


Para você chegar a um estágio avançado, porém, jamais se esqueça de construir uma base sólida, para sua muralha não ruir: “Quem quer ter uma boa guarda deve aprender e treinar todas as etapas da guarda”, diz Fabio Gurgel, líder da Alliance. “Primeiro fechada, com o adversário de joelhos; depois com o mesmo em pé; depois a guarda clássica com pé na virilha e suas variações. Insista no básico, que depois seu biótipo e seu tipo de jogo vão certamente definir o que é ideal para você.” Pronto, agora você está pronto para espernear – desta vez, com toda a classe.

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